quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Chico-Chorão. Podes crer!


Trinta anos mediaram entre O Que Está Lá Fora (livro que completa a trilogia de que fazem parte Onde Vivem os Monstros e Na Cozinha da Noite) e Chico-Chorão, último álbum escrito e ilustrado por Maurice Sendak. Com a sua publicação, em 2011, reacenderam-se polémicas, ressuscitaram-se dúvidas sobre se as crianças seriam os destinatários certos dos seus livros, e voltaram a destapar-se rótulos como "um livro perturbador para as crianças, sob vários aspectos". 
Considerado por muitos o mais genial e imaginativo criador na área da literatura infantil, aos 83 anos, Sendak evidenciava continuar senhor de toda a sua genialidade. Aos admiradores e defensores convictos, restava desejar, profundamente, que este não fosse o seu último livro… Infelizmente, viria a morrer um ano depois.


Originalmente concebido como animação sobre o algarismo 9, no âmbito da colaboração que manteve com a sobejamente conhecida Rua Sésamo, Sendak levou cerca de três anos a concluir Chico-Chorão. Ao som de Verdi, as personagens deixaram de ser pessoas e cederam lugar a porcos humanizados. Numa entrevista em que foi questionado sobre o porquê da mudança, o irreverente autor respondia assim: "I’ve always loved pigs: the shape of them, the look of them, and the fact that they are so intelligent. I think I like them more than I like little human boys." 
Subversivos, irreverentes, terríficos, inadequados, geniais ou brilhantes... À semelhança do seu criador, os mais de 90 livros de Sendak ocupam lugar de destaque na história da literatura.


Através de um delicioso e irresistível  prólogo em rima, o leitor fica a saber que este  porquinho, já com 9 anos, vai festejar pela primeira vez o seu aniversário. Por razões que nos escusamos a contar, os seus progenitores nunca viram motivo para os festejar. Depois de órfão, a sorte muda quando, na sua vida, surge uma tia tão afectuosa quanto anafada. Um bolo e um fato de cowboy são prendas arrebatadoras. Mas os olhos de Chico-Chorão e a expressão dos animais que o circundam fazem adivinhar algo mais. Uma festa inesquecível,  talvez para compensar?


Com oito anos de comemorações em atraso, o pequeno Chico não parece disposto a deixar o evento em mãos alheias. Enquanto a tia vai trabalhar, chama a si a organização de uma festa de máscaras, distribuindo convites por alguns porquinhos imundos. 


O que se segue é o caos. Uma alucinante balbúrdia, bem ao jeito de Mestre Sendak. Uma espécie de parada de máscaras bizarras, folcloricamente coloridas, vai desfilando, a um ritmo frenético, até encher por completo as páginas do livro. A cadência do texto rimado,  e algo alucinado, dizemos nós, partilha o mesmo frenesim. Os espaços em branco vão desaparecendo à medida que a festa vai atingindo o seu auge. Ninguém parece ter faltado, como atestam as duplas páginas superlotadas de personagens e de cor.


Há porcos mascarados de índios, de cowboys, de xerifes, de monstros... E até a morte parece não ter querido perder o festim. Criaturas loucas  e seres mais ou menos assustadores, afinal como como os que povoam o mundo real das crianças e de quem, dizia Sendak, não as podemos defender. Apesar dos instintos de superproteção de que padecemos. Até ao regresso prematuro da tia, obviamente em polvorosa, também nós, leitores, andamos por ali, estonteados e sem fôlego. Perdidos no meio de uma multidão em êxtase, que suspeitamos integrar mais estranhos do que amigos.


Um cartaz em que lemos a pergunta "Para Onde Vamos Agora?" expressa bem a desorientação. A mesma que, por vezes, as crianças experienciam silenciosamente. Com alguns elementos recrutados à banda desenhada, hábito reiterado na sua obra, Sendak distribui um sem número de mensagens por cartazes ou objectos carregados pelas próprias personagens, que, por sua vez, se desdobram em múltiplas referências culturais, alusões  ou críticas mordazes.  Como a do jornal que Chico-Chorão tem na mão, onde se lê "Lemos Livros Proibidos".


Temas como a rejeição, o alheamento ou a incompreensão dos adultos pela infância atravessam a obra do autor. Quase sempre apaziguados pelo zelo e amor incondicional de um parente próximo. À semelhança da irmã em O Que Está Lá Fora, esse papel é aqui desempenhado pela tia.  Ainda assim, incapazes de eliminar totalmente a insegurança, os medos ou as dúvidas de quem sentiu a rejeição ou a incompreensão. No caso de Chico-Chorão, o pequeno porco que falhou oito aniversários, essas sequelas são retratadas de forma gloriosamente irónica e subtil nas duas últimas páginas do livro. Podes crer!


Esta é uma festa a que nunca faltaríamos. Empunhamos um cartaz de profundo agradecimento à Kalandraka pela chegada de mais um livro de Maurice Sendak! Ainda que tardiamente, aos poucos a sua obra vai chegando. Goste-se ou não, certo é que ninguém lhe fica indiferente. 


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